sábado, 30 de abril de 2011

LUZ CAI UM POUCO. SOB FOCO DE LUZ, MARIA MAIS NOVA.

MARIA MAIS NOVA
(IMITA O PAI) “Quem foi que misturou água nesse xampu?” Fui eu pai... Eu li uma reportagem que diz que o xampu tem detergentes que acabam com o cabelo. Misturei água... pra ficar melhor.

                                               MARIA
(GRITA PARA IMITAR O PAI) “Mas o xampu é meu! Eu comprei, como compro tudo aqui nessa casa. Eu trabalho, compro o xampu e quero usar com detergente. Começa a trabalhar, compra o teu xampu e faz o que bem entender com ele. Com o meu não!”

JOÃO PERMANECE ATENTO À HISTÓRIA DE MARIA.

                                               MARIA
Eu nem sei pra que ele queria xampu. Não tinha quase cabelo mais. (OS DOIS ACHAM GRAÇA DA SITUAÇÃO) Na verdade, o problema era que eu tinha largado a faculdade. Há dois meses que não fazia nada. Só pensava no vazio da minha vida. Sozinha, numa casa cheia de gente, sem gente que pudesse me ouvir.

MARIA MAIS NOVA
(IMITA O PAI) “Vai ficar o dia todo aí... sem fazer nada? Não estuda... Não trabalha... Acho bom dar um rumo nessa vida”

                                               MARIA
(UM LEVE ORGULHO DE SI MESMA) E eu fui seguir meu rumo. (RI) E que rumo... (MELANCÓLICA) Eu achei um rumo pra minha vida. E, como os jovens, dizem, "dancei”. (SILÊNCIO) Bom, eu tinha um par de coxas maravilhoso.

JOÃO
Isso ajuda muito.

MARIA
Sabe que esse par de coxas ajudava em tudo quanto era lugar em que eu ia procurar emprego? (RISOS) Eu chegava em lugares para a entrevista: (IMITA OS EMPREGADORES). “A senhora têm inglês fluente?” (BALANÇA NEGATIVAMENTE A CABEÇA). “A senhora é datilógrafa exímia?”

                                               JOÃO
(RI) Exímia?

                                               MARIA
Exímia! (MAIS UMA VEZ SINALIZA NEGATIVAMENTE A CABEÇA). Aí eles viam o meu corpo, davam uma olhada de rabo de olho nas minhas coxas... “A senhora sabe atender telefone?” Pronto, estava contratada.
JOÃO
As coxas superpoderosas de dona Maria!
MARIA
E as cantadas?

                                               MARIA MAIS NOVA
(TOQUE DE TELEFONE EM OFF) Empresa tal, prazer em atender, bom dia! (CONVERSA COM PESSOA DO OUTRO LADO DA LINHA). Eu tenho uma voz bonita? Obrigada, senhor, em que posso ajudá-lo? (OUTRO TOQUE DE TELEFONE) Empresa tal, prazer em atender, boa tarde! O doutor fulano não está, quer deixar recado? O quê? A que horas eu saio? (OUTRO TOQUE DE TELEFONE). Empresa tal, prazer em atender, boa noite! Se eu dou plantão depois do horário? (SAI OFENDIDA COM A PERGUNTA)

                                               MARIA
Foi muito difícil! Tinha que ter um jogo de cintura... E olha que eu tinha compostura, viu? (PAUSA) Eu até consegui uma promoção: secretária!

                                               JOÃO
Mas sem saber inglês? Sem ser “exímia”?

                                               MARIA
(RINDO) É, mas meu chefe viu que, além das coxas, a minha voz também era muito bonita, e que isso acalmava os clientes que ligavam enfurecidos atrás dele, cobrando seus atrasos e suas faltas nas reuniões. Mas... (CONFIDENCIA PARA O NOVO AMIGO). Eu não sabia bater à máquina.

                                               MARIA MAIS NOVA
(VOLTA Á CENA CARREGANDO MUITOS PAPÉIS). Calma aí, já vai sair seu relatório. (FAZ UMA VERDADEIRA CONFUSÃO COM OS PAPÉIS. FALA PARA UM PATRÃO IMAGINÁRIO). Eu sei: muitos erros... tudo muito borrado também... Pode deixar, doutor, eu vou melhorar. Eu sei, o par de coxas, a voz... (JOGA OS PAPÉIS PARA O ALTO).

MARIA
Eu precisava trabalhar, por isso aceitei o emprego, mas eu odiava ser secretária!

MARIA MAIS NOVA
(FALA PARA O NADA) Ontem eu tive um sonho horrível de novo. Que saco! O mar era imenso. Uma onda gigantesca se formava lá embaixo e eu nadava, quase na beira da praia. Mas era estranho, eu olhava para a areia e só via pessoas mortas e eu não queria morrer; por isso não ia para a areia. E eu ficava ali, no rasinho do mar, olhando a onda gigantesca se formar. Eu não tinha coxas e nadava só com o tronco. E a onda vindo, e meu tronco se mexendo desesperadamente, os braços pareciam asas correndo da onda. (GRITO MUDO). E aí? Eu acordei, né?  E olhei logo para as minhas coxas. Deus me livre de ficar sem minhas coxas!

                                               JOÃO
Arranjou outro emprego? Outro escritório?

                                               MARIA
Mas eu já não te disse que odiava ser secretária? Eu era como você, também queria ser artista, mas não sabia como começar. Aí me disseram: “vai dançar...”

MÚSICA AO FUNDO. NO RITMO DA MELODIA, AS DUAS MARIAS CAMINHAM LENTAMENTE PARA LADOS EXTREMOS. JOÃO OBSERVA A CENA DAS DUAS, VÊ SIMULTANEAMENTE A LEMBRANÇA E A REALIDADE DA AMIGA.  O TEMPO DA EMOÇÃO SENDO CONSTRUÍDO.

                                               MARIA
Sabe como é... Dezenove anos. Cintura fina... “parzão” de coxas luminoso, sob o salto alto... Nossa! O mundo todo babava.

AS DUAS MARIAS DANÇAM, CADA UM NO SEU ESTILO. MARIA MAIS NOVA FAZ UM SHOW, COM “BOIS”. MARIA DANÇA LINDAMENTE; EXPLORA TODA A SUA SENSUALIDADE; SENSUALIDADE CONSTRUÍDA DURANTE TODA UMA VIDA. JOÃO FICA ENCANTADO, PUXA MARIA PARA SI E DANÇA COM ELA POR UM TEMPO.

MARIA
(AOS POUCOS, MARIA SAI DO “TRANSE” DESENCADEADO PELAS LEMBRANÇAS E PELA DANÇA COM JOÃO). Pára com isso... Pára. (AFASTA JOÃO COM AS MÃOS E GRITA) PÁÁÁÁÁRA! (AS DUAS MARIAS FICAM IMÓVEIS). Não deu mais pra mim.

SILÊNCIO. JOÃO, LEVEMENTE PERTURBADO, RETORNA AO BANCO DA PRAÇA. MARIA CONTINUA EM PÉ, REFLEXIVA. MARIA MAIS NOVA ENCAMINHA-SE ATÉ UMA DAS ESCADAS, ONDE PERMANECE APOIADA. MARIA, UM POUCO MAIS CALMA COMEÇA A FALAR E SENTA-SE AO LADO DE JOÃO. COM O OLHAR, PEDE DESCULPAS PELO CONSTRANGIMENTO DA SITUAÇÃO.

                                               MARIA
Eu sei que o dinheiro era fácil, dava pra pagar a pensão onde eu morava. Eram seis meninas morando num apartamento de sala e dois quartos. Quatro mulheres num quarto; a gente dormia em beliche. E mais duas dormiam na sala. A dona da casa no outro quarto, sempre com um homem diferente na cama.

                                               JOÃO
(FINGE QUE NADA ACONTECEU) Quatro mulheres num único quarto?

                                               MARIA
(O TEMPO DE CONSTRUÇÃO DE UMA PIADA, PARA TUDO VOLTAR AO NORMAL RAPIDAMENTE) E a janela?

                                               JOÃO
(COADJUVANTE DA PIADA) O que é que tem a janela?

                                               MARIA
Não tinha. O único vento era o que vinha da sala e que precisava fazer a curva no corredor para chegar até o nosso quarto.

OS DOIS ACHAM GRAÇA.

                                               MARIA MAIS NOVA
Eu quero ir ao banheiro. Es-tou a-per-ta-da. Nessa casa só tem um banheiro, ô Sirlene. E eu que você tem que se aprontar pro show? Eu também tenho que trabalhar. Não é porque eu não sou mais dançarina e trabalho como garçonete que não tenho que me arrumar. E vambora logo com isso. Vamo lá, vamo lá... (BATE NA PORTA DO BANHEIRO IMAGINÁRIO).

MARIA
Mas a gente até que se entendia bem: todas faziam parte de um mesmo time. O time das que tinham que se virar sozinhas. Cada uma dava o seu jeito pra sobreviver. A gente brigava exatamente porque cada uma era de uma maneira, mas, no fundo, a gente compreendia perfeitamente a vida que cada uma levava.

Nenhum comentário:

Postar um comentário