sexta-feira, 24 de junho de 2011

Eis que é chegada a hora de rever tudo:
a imagem refletida no espelho
as letras grafadas
- supostamente a ouro -
a força do grito
o jeito do gesto
o gesto sem jeito
e o silêncio,
até.

Eis que é chegada a hora de, até,
tirar a coberta da frente do espelho
usar liquid paper nas letras grafadas
borrar o grito
gerir outros gestos
gestuar outros jeitos
mudar a voz.
Inté.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A BALADA DO TEMPO









A BALADA DO TEMPO

 

Texto: Cynthia Pacheco



Esquete

UM PEQUENO APARADOR. EM CIMA DELE, GARRAFAS DE BEBIDA. SELMA, A GARÇONETE, ESTÁ ENCOSTADA NO APARADOR. MAIS À FRENTE, UMA MESA COM DUAS CADEIRAS. SENTADO EM UMA DELAS, O HOMEM BEBE. UM DESPERTADOR DE CELULAR TOCA INSISTENTEMENTE.

SELMA
(IMPACIENTE, PEGA UMA GARRAFA DE VODKA, SERVE O COPO DO HOMEM) De novo esse despertador, cara? Pra que isso?! Tá aqui sua vodka.

HOMEM
Obrigado!

SELMA
Agora será que dá pra você tomar sua bebida e cair fora?

HOMEM BEBE MAIS UM GOLE, OLHA PRA MULHER COM DESCASO E VOLTA A ENTERRAR A CARA NO COPO.

SELMA
Sem querer interromper: por que é que você está bebendo tanto hoje?

                                               HOMEM
Porque aqui é um bar.

SELMA
Quer dizer, você sempre bebe muito. Mas hoje, esse seu despertador, tocando de dez em dez minutos há horas. Meu saco não agüenta mais!
                                              
HOMEM
Sinto muito, mas o meu ainda está vazio. (APÓIA O COPO BRUSCAMENTE) Quero outra dose.
                                              
SELMA
(ENCHENDO O COPO DO HOMEM) Tudo por culpa dessa dona desse bar que tem essa filosofia idiota de que o bar não tem hora pra fechar: (IMITA) “O último cliente é quem fecha!”. Vai pro inferno... Isso é porque ela não fica nesse sobe e desce de escada enchendo o copo de um único cara até as cinco horas da manhã.

HOMEM
 (PUXA A GARÇONETE). Senta aqui comigo, vou te explicar....
                                              
SELMA
Sobre o seu porre? Não esquenta; eu já estou acostumada com homem bêbado. Mas esse despertadorzinho. Caramba, que coisa chata!

HOMEM
(GRITA) Esse despertador só vai parar quando eu travar ele, senão ele volta a tocar.
                                              
SELMA
(IRÔNICA) E eu vou ter que aturar isso enquanto você estiver aqui?
                       
                                                HOMEM
Vai ter que aturar até quando chegar a hora. Senta aí!

SELMA
(IRÔNICA) Você sabe que os funcionários da casa não podem fazer companhia aos clientes!

HOMEM
Senta aí!

SELMA
Cara, eu quero ir pra casa, por favor...

HOMEM
Senta aí,caramba!

SELMA
(INTIMIDADA, ELA SE SENTA À MESA) Eu acho isso o fim. Você devia colaborar, eu preciso ir pra casa, estou cansada. Só nós dois aqui...

HOMEM
É justamente isso. Não estamos a sós?

SELMA
Ah, claro! Esqueci! O vigia, o Josemar, tá lá fora, me espe... quer dizer, esperando você ir embora pra fechar o bar.

HOMEM
(SORUMBÁTICO) Não, querida Selma. Aqui dentro. Estamos nós três.

SELMA
Mas eu tenho certeza, o Josemar está lá...

HOMEM
(RUDE. GRITA) Aqui dentro, Selma. Estamos nós três. Eu, você e ele.

SELMA
E eu ainda perco meu tempo conversando com bêbado.

HOMEM
Eu estou aqui dentro. Você está aqui dentro. E ELE também está aqui dentro.

SELMA
(INCRÉDULA) Deus?!
                                              
HOMEM
Não, Selma: o tempo!

SELMA
Hiiii! Acho que está na hora de você tomar assim... (PAUSA. LEVANTA-SE ABRUPTAMENTE). Café! Vou trazer um café pra...

HOMEM
(LEVANTA-SE JUNTO COM ELA. SEGURA SEU BRAÇO E GRITA) Não! (ACALMA-SE FAZ GESTO PARA OUVIR ALGO ) Ouça!

SELMA
Ai meu saco!

HOMEM
Escuta!

SELMA
(TENTA ESCUTAR, FAZ CARETA, MAS DESISTE) Não ouço nada!

HOMEM
Shiii!!! Escuta! (GESTICULA PARA TENTAR ESCUTAR. DÁ UM SORRISO). Ouviu?! Eu não disse?! Ele me disse que também está te chamando.

SELMA
(FAZ O SINAL DA CRUZ) Você pára com isso que eu não gosto de brincar com essas coisas...

HOMEM
Ele diz isso todo o dia pra mim, Selma. Ele está indo embora.

SELMA
Graças a Deus.

HOMEM
(GRITA. LEVANTA-SE E DISCURSA EM PÉ ) Você está ficando louca?! Se ele for embora acabou tudo, Selma.
                                              
SELMA
Mas é exatamente o que eu estou tentando dizer... Graças a Deus. Acabou mesmo?! (LEVANTA-SE, PEGA O HOMEM PELO BRAÇO, E DIRIGE-SE COM ELE ATÉ A PORTA) Agora você vai pra sua casa, eu vou pra minha casa, o Josemar vai pra minha, quer dizer, pra casa dele e todos nós seremos muitos felizes debaixo de nossos cobertores... vamos dormir, sonhar, dormir até...

HOMEM
(DESVENCILHA-SE DE SELMA COM UM EMPURRÃO. GRITA) Até chegar o amanhã....

sábado, 4 de junho de 2011

gracias A llan vida

 Já quis mentir
e olhar no espelho, dizendo,
não... nada disso faz parte de mim, não...
E, como queiram, era muito ser eu.
Era muito ser 'eu'.
É, demais, ser algo.
Afinal, ter que aqui estar,
quieta e miúda, 'sem extrapolar'
o gole de cerveja, a espuma do drink,
a água do mar, o mar...
E eis que vejo, ela, eu, nós todos,
expostos por aqui e por lá
em Allan
http://rhuanbonfim.blogspot.com
que tatua por aí
um imenso 'tá' 'tu' 'há'
a insistir e respirar.

Quantas de nós, há, enfim, a respirar,
quantas ainda insistem?
Bacantes enlouquecidas,
belas? errantes?
elos...
Quantas de nós ainda há?
Quantas, por Deus,
insistem?
Ah!...

último ato

MARIA MAIS NOVA DISTANCIA-SE DA CENA. JOÃO AGORA FALA DIRETAMENTE PARA MARIA, QUE FALA PARA SI MESMA.

JOÃO
A minha filha era muito inexperiente. Muito nova. Tinha dezenove anos. Alguém pode me dizer por que é que os filhos sempre têm que agir de forma diferente do que a gente espera que eles ajam? Eu, sinceramente, não consigo entender como é que uma pessoa tão despreparada para a vida pensa que pode sobreviver longe dos pais. Abandonar o canto seguro e ficar batendo cabeça por aí.

MARIA
Eu sempre quis voar muito...

JOÃO
 Ela era tão impulsiva. Trabalhava em qualquer coisa.

MARIA
Voar alto...

JOÃO
(IRRITADO) Eu pedi tanto para ela estudar. Mas ela não queria, achava que não precisava. Queria trabalhar e ser dona do próprio nariz. E sempre metia o nariz onde não devia. E aí veio a gravidez.                                                        
MARIA MAIS NOVA
(MARIA MAIS NOVA AGORA CONVERSA COM UMA DAS AMIGAS) Obrigada por ter ido comigo, Grace Kelly. Se você não tivesse lá, eu acho que ia desmaiar de tanto medo e de tanto nojo de mim, do médico açougueiro, do meu pai. Agora acabou tudo, como num passe de mágica. É como se nada tivesse acontecido...

                                               MARIA
... fica tudo diferente para sempre.

MARIA MAIS NOVA
(FALA COM O DESTINO) Não, eu não quero dormir. Se eu dormir, vou sonhar com o mar de novo. O mar vai me engolir e eu não vou conseguir sair da confusão, porque eu estou fraca. Eu não quero sonhar nunca mais.
                       
                                               JOÃO
(IRRITADO) Teimosa! Eu disse pra não engravidar. Namorou à vontade. Não me consultou na hora de fazer o filho, ligou para colocar a bomba na minha mão e depois ainda me culpou por ter feito o que bem entendeu. Mas eu tenho consciência de que falei quando saiu de casa...

MARIA MAIS NOVA RETOMA A DISCUSSÃO COM SEU PAI.
MARIA MAIS NOVA
(GRITA PARA O PAI) Eu vou dar para o primeiro que aparecer, sim, e você não tem nada a ver com isso! Você não vai mais acabar com meus sonhos de ser feliz.

JOÃO
Saiu batendo a porta. Desaforada! Pensava que eu ia sair correndo atrás dela, mas não, de jeito nenhum. Queria viver na minha casa, tinha que ser do meu jeito. Eu sempre fiz tudo o que meus pais queriam, porque ela não podia fazer o que eu queria? Eu só queria aquela menininha da bandejinha de volta. Queria as mãozinhas dela fazendo carinho na minha cabeça.
                                                          
MARIA MAIS NOVA
(AINDA PARA O PAI) Você nunca me apoiou. Não me deu força para que “eu” tivesse uma menininha que me desse amor numa bandeja.

JOÃO
Eu casei com quem eles achavam que era bom pra mim. Minha mulher e eu não tínhamos nada em comum. A gente estava adoecendo de viver junto.

MARIA MAIS NOVA
Não agüento mais ouvir você falando com esse monte de mulher pelo telefone. Pensa que eu não sei? É só minha mãe passar uma temporada no hospital que você fica aí, o tempo todo, conversando com essas vacas.

JOÃO
A doença da relação estava acabando com a vida de minha mulher, que vivia cheia de complicações...

MARIA MAIS NOVA
Eu não vou agüentar ver você marcando encontro com essas putas. Um dia eu conto tudo pra minha mãe. Acho bom você tomar cuidado para ela não saber das suas traições...

JOÃO
Mas eu nunca deixei ela saber da gravidez desnecessária da nossa filha. Só que a solidão em casa foi ficando insuportável. Antes, com a menina lá, a gente se esquecia um pouco de que estava casado por acaso.

MARIA MAIS NOVA
Não sei como mamãe ainda não morreu de desgosto vivendo com você.

JOÃO
Minha mulher andava pela casa, desesperada. Arrumava o quarto da menina, como se ela ainda estivesse com a gente. Mas ela não aparecia por lá. Às vezes ela ligava pra mãe, mas não falava comigo...

A PARTIR DE AGORA, JOÃO E MARIA CONVERSAM, CADA UM EM SEU TEMPO E EM MUNDOS DIFERENTES.  MARIA MAIS NOVA CONTINUA A DESENTERRAR LEMBRANÇAS.

                                               MARIA
 (LEVANTA-SE E, DEGAVAR, ENCAMINHA-SE PARA O EXTREMO OPOSTO ONDE ESTÁ MARIA MAIS NOVA) De vez em quando, meu pai me procurava pra saber se eu ainda estava viva.

                                               JOÃO
Com o tempo a raiva foi diminuindo e, de quando em vez, eu ligava pra ela, mas não pedia pra ela voltar. Pra não dizer que nunca fiz isso, só fraquejei uma vez, quando minha mulher estava nas últimas...

                                               MARIA MAIS NOVA
(IMITA O PAI) “Filha... Volta pra casa... tua mãe vive perguntando por você. (PAUSA) Tua mãe está doente.”

MARIA MAIS NOVA DIGERE A DOR DA SITUAÇÃO COM UMA LEVE PAUSA.

                                               MARIA MAIS NOVA
(PARA O PAI) Eu vou visitar ela, pai. Durante a semana não dá. Trabalho à tarde e à noite. De dia tenho que dormir um pouco.  Final de semana eu vou, prometo!

                                               JOÃO
(SECO, RESPONSABILIZA A FILHA) Tua mãe morreu!

                                               MARIA MAIS NOVA
(GRITA) MÃE!

                                   MARIA MAIS NOVA E MARIA
Mamãe?
           
                                               MARIA
Minha mãe conseguiu morrer em Copacabana...

MÚSICA SUAVE E DISTANTE. MARIA RETORNA VAGAROSAMENTE PARA O BANCO ONDE ESTÁ JOÃO.

                                               MARIA
Um dia eu acordei e não tinha mais mãe.

MARIA MAIS NOVA
E não tinha mais pai.

MARIA
E eu nem pude dizer pra ele que já tinha dinheiro, pelo menos, pra comprar quantos potes de xampu eu quisesse pra botar toda a água do mundo dentro.

MARIA MAIS NOVA
Toda a água do mundo dentro de todos os potes de xampu que eu pudesse comprar!

                        MARIA
Eu era uma mulher independente! Podia lutar pela integridade física do meu próprio xampu! Tinha dois empregos e morava sozinha numa “kit” em Copa que ele nem chegou a conhecer. Também, não ia gostar de saber que eu trabalhava num bar com o par de coxas de fora. Melhor assim, morreu sem saber. (FALA PARA JOÃO) Estou falando demais?

MARIA MAIS NOVA
(CONTRACENA COM UMA DAS ESCADAS. IMITANDO O PATRÃO) “Me desculpe, Maria. Mas você está errando todos os drinques. Já vieram reclamar que você mistura “whisky” na caipirinha. “Whisky” na caipirinha,  Maria?!” (PEQUENA PAUSA)        Desculpe, mas o senhor sabe, a minha mãe morreu...

RESIGNADO, JOÃO OLHA PARA UM FOCO DE LUZ.

                        JOÃO
Pai! Mãe! Passei no concurso pra juiz.  Se eu estou feliz? Vocês querem saber se eu sou feliz?

MARIA MAIS NOVA CONTINUA A DISCUSSÃO COM SEU PATRÃO
           
MARIA MAIS NOVA
Minha mãe morreu, cara. (GRITA E ERGUE OS BRAÇOS) Meu pai morreu; meu filho morreu. Dá pra respeitar a dor de uma pessoa? (PAUSA. BAIXA O TOM DE VOZ) É, não deu pra respeitar minha dor! (TEMPO. VOZ DE EMBRIAGADA. APOIA-SE NA ESCADA) Manoel, me dá mais uma vodka. Não enche o saco, porra, Manoel, me dá mais uma porra de uma vodka e pronto! Porra, Manoel, é pra esquecer. (PAUSA) Não, Manoel, porra não é palavrão, porra é vírgula.

                                               MARIA
Não deu mais pra segurar o par de coxas que segurava o emprego. Pra mim não deu!

JOÃO
Às vezes eu tenho vontade de ligar pra minha filha, saber como ela está.

                                               MARIA
Eu tenho sonhado todo o dia o mesmo sonho. É só fechar os olhos que, pronto, já estou dentro do apartamento de alguém. Sempre alguém solitário, triste. A pessoa sentada, em uma cadeira de balanço; ou olhando pela janela para a rua escura e quieta.

                                               JOÃO
Mas eu acho que a gente se perdeu de vez.

MARIA PEGA A SUA BOLSA E SE ENCAMINHA PARA O LADO OPOSTO ONDE ESTÁ MARIA MAIS NOVA.

                                               MARIA
Às vezes a pessoa está morta. E eu sempre saio correndo do apartamento dela e acordo nessa hora. (PARA JOÃO, À DISTÂNCIA) Eu já lhe contei que quando era adolescente estava olhando o mar lá no pontal da praia do Leme e um senhor disse que o mar era belo e que a vida também era bela? (PAUSA) Queria ajudar. Acho que ele tinha medo que eu me matasse ali, na frente dele. Mas eu não teria coragem. Eu nunca vou me matar!      
                                  
JOÃO
Talvez um dia...

MARIA MAIS NOVA
(ALIVIADA) Ontem eu sonhei com o mar de novo. Ainda tinham aquelas pessoas mortas na areia e a onda enorme continuava me perseguindo. Mas eu consegui nadar e fiquei boiando tranqüilamente a noite toda. A onda, lá atrás, parou de me perturbar. (SOBE ALGUNS DEGRAUS DA ESCADA)
                                  
AO SEU LADO, APARECE UM FOCO DE LUZ, QUE REPRESENTA UMA PRESENÇA: UMA SAUDADE, UM ANJO, A MORTE OU A SOLIDÃO. MARIA CONTINUA CAMINHANDO NA DIREÇÃO OPOSTA À MARIA MAIS NOVA.

MARIA MAIS NOVA
(ESTENDE A MÃO PARA MARIA. CHAMA POR ELA) Maria!

MARIA PÁRA E VOLTA, RETORNA EM DIREÇÃO AO CHAMADO. ESTENDE A MÃO PARA MARIA MAIS NOVA.

                                               MARIA
Maria?

O TEMPO NECESSÁRIO PARA O RECONHECIMENTO; ENTRE CADA FALA, O TEMPO ENTRE AS CONTRAÇÕES DE UM PARTO.

MARIA

Quero meu pai de volta!
MARIA MAIS NOVA
Quero minha mãe de volta!
MARIA
Quero meu par de coxas de volta!

AS DUAS MARIAS FICAM COM AS MÃOS ESTENDIDAS UMA PARA A OUTRA: PRIMEIRO O RECEIO E A DÚVIDA; DEPOIS A CERTEZA DO REENCONTRO E A VONTADE DO RECOMEÇO. JOÃO CAMINHA PARA O LADO OPOSTO, OLHA PARA A CENA E ENXERGA AS DÚVIDAS DE SUA PRÓPRIA VIDA; ACENDE UM CIGARRO. CRESCE A MÚSICA, DIMINUI A LUZ.


                                                           FIM




sábado, 21 de maio de 2011

MARIA EMBARCA NOVAMENTE EM UMA “VIAGEM” SÓ SUA. MARIA MAIS NOVA CONVERSA COM O FILHO QUE ESTÁ ESPERANDO. JOÃO PARTICIPA EMOCIONALMENTE DA CENA, QUE TAMBÉM É UMA LEMBRANÇA DE SUA HISTÓRIA.

MARIA
“Quando crescer vai ser médica, geriatra. Vai cuidar de mim!”

                                               MARIA MAIS NOVA
Quando eu era criança achava que, sempre que aparecesse um problema, viria algum príncipe encantado montado naquele lindo cavalo branco, ou algum anjo ou uma fada madrinha em meu socorro...

                                               MARIA
“Olha só, mulher...”

                                               MARIA MAIS NOVA
Quando eu soube que estava grávida de você, pensei: Pronto! Chegou meu anjo...

                                               MARIA
“... Olha como ela escreve direitinho...”

                                               MARIA MAIS NOVA
E eu pensei em você fazendo carinho na minha cabeça quando eu estivesse muito triste pelas coisas da vida. Pensei nas suas mãozinhas tocando meus cabelos e me fazendo esquecer as preocupações, a falta de dinheiro, os namorados babacas...

                                               MARIA
“... Olha como ela faz o  “A”...”
                                              
MARIA MAIS NOVA
Durante o mês em que fiquei sem saber o que fazer com você olhava todas as roupinhas de bebê nas lojas...

                                               MARIA
“... a letra “E”...”

                                               MARIA MAIS NOVA
E quando eu segurava um casaquinho ou um sapatinho, sentia uma saudade imensa do que eu nunca vivi. Uma saudade enorme de você.

MARIA
“... se não quiser ser médica, vai ser é professora...”

MARIA MAIS NOVA
Eu queria te pedir perdão. Eu não queria tirar você de mim, mas não sei o que fazer. Desculpa... Eu queria tantas coisas pra você e não consigo nem te deixar nascer.

MARIA
“...vai contribuir para o futuro do País!”

MARIA MAIS NOVA COMEÇA A CONVERSAR COM O PAI, ENQUANTO JOÃO RECONTA A SUA HISTÓRIA PARA SI MESMO. DESSA VEZ, É MARIA QUE SE REFUGIA NO SILÊNCIO.

                                                MARIA MAIS NOVA
(PARA O PAI). Você sabe como eu me sinto? Eu fiquei o tempo todo na sala de espera pensando que você ia aparecer de uma hora pra outra e me pedir desculpas.

                                               JOÃO
(UM POUCO CONSTRANGIDO, FALA ALEATORIAMENTE) Uma vez, bom, uma vez eu vivi uma situação parecida.

                                               MARIA MAIS NOVA
Eu imaginei que você ia pegar minha mão, como quando eu era criança e atravessava a rua sem olhar pro sinal, lembra?

                                               JOÃO
A minha mulher andava muito deprimida, porque a mãe dela tinha morrido. Ela estava tão arrasada que começou a beber muito. (PAUSA) Eu tentava esconder isso da minha filhinha o tempo todo. Ela devia ter uns cinco anos.

MARIA MAIS NOVA
Eu achei que você ia me apoiar.

JOÃO
(SAUDOSO) Ela era tão inteligente, a minha pequenina. Ela tinha percebido que alguma coisa estava errada.

MARIA MAIS NOVA
Achei que eu teria seu apoio pra ter esse filho. Eu queria um filho pra me servir carinho numa bandeja...

JOÃO
Um dia, a minha mulher bebeu mais do que devia e eu precisei colocá-la embaixo do chuveiro, de roupa e tudo, pra ver se a água amenizava o efeito do álcool. Nesse dia eu me esqueci de esconder a cena da menina. Então, enquanto eu segurava a minha mulher pra ela não cair, a minha filha apareceu: vestia um pijaminha e segurava uma bandeja.

MARIA MAIS NOVA
No meio da bandeja, um copo d’água; de um lado, um brinquedinho qualquer e, do outro lado, um bombom.
                                              
JOÃO
A minha mulher chorou tanto, mas tanto... Saiu toda molhada do chuveiro e ficou uma eternidade abraçada com a nossa filha.

                                                MARIA MAIS NOVA
Mas eu não pude ter essa criança e só fiquei encharcada de dor.

JOÃO
(EMOCIONADO) Mais tarde, quando completou sete anos, ela ficou curiosa sobre a história de nossa família. (SORRI, ORGULHOSO). Não sei de onde ela tirou essa idéia, tão novinha assim.  Ela queria saber quem era quem, então começou a perguntar sobre todo mundo: avô, avó, quem era pai e mãe de quem. Quando ela perguntou sobre o avô materno, eu disse: “Seu avô está no céu e você não conheceu, pois ele foi para o céu antes de você nascer. O nome dele era José”. Pronto, ela começou a chorar, ficou muito triste... Ela perguntou por que nós esperamos ele morrer pra deixar ela nascer? Durante muito tempo, ela ficou triste comigo e com a mãe. Disse que o avô dela virou anjo antes dela nascer.
                                                                                             
MARIA MAIS NOVA
Mais uma vez por sua culpa, eu fiquei sem meu anjo salvador. Eu sempre esperei por um anjo. (OLHA PARA O INFINITO). Céus! Onde está meu anjo salvador? Ele precisa estar em algum lugar.         
                                              
JOÃO
E eu fiquei tão sensibilizado com a sensibilidade dela ... passei a achar mesmo que eu era culpado por ela não ter conhecido o avô. Que loucura! (JUSTIFICA-SE) Mas eu não me sentia culpado por ela ter feito o aborto. Definitivamente, eu não tive culpa de nada. 

MARIA MAIS NOVA
(EM TOM ACUSATIVO, FALA COM O PAI) Mas o meu anjo salvador não é você! Tô cheia de lágrima por dentro. Tá doendo muito! Dói tudo. Eu não queria ter feito... Eu não tenho ninguém. A minha mãe só liga pra sua própria dor. Você não liga pra dor de ninguém. O meu namorado nem sabe que eu sinto dor, nem sabe que eu existo. Eu queria tanto ter tido alguém na minha vida. Eu queria meu filhinho agora, aqui, perto de mim. E eu não tive seu apoio pra ter esse filho. (PAUSA). Eu não tenho mais filho. Eu não tenho mais nada.

domingo, 8 de maio de 2011

UMA PAUSA NO XAMPU...

... para dizer da importância das dores, das cores, dos sabores, dos amores e das mães em nossas vidas. Seja 'como' ou 'por' elas ou 'pela falta' delas, um FELIZ DIA DAS MÃES para cada um, sem comercializar a data, POR-FA-VOR, sejamos sempre mais mães, cada um de nós. Acho que se houvesse mais um pouco de mãe em cada pai, em cada filho, em cada instituição - olhando, cuidando, orando, guiando, atuando - e, até mesmo, em cada mãe, seríamos, mães felizes.
beijos,

domingo, 1 de maio de 2011

MARIA MAIS NOVA
(FALA PARA UMA DAS AMIGAS DO APARTAMENTO) Grace Kelly, desculpe, eu só fui experimentar um pouquinho do teu perfume. Só um pouco. Eu sei que derramou, mas você precisa parar de se apegar às coisas. Tem que ser desapegada. Foi sem quereeer. Eu já falei: foi sem querer... Eu compro outro. Eu sei que era francês o perfume, que foi teu homem que te deu, mas desapega, Grace Kelly, pelamordedeus, desapega.

ENCAMINHA-SE PARA OUTRA ESCADA.

                                               MARIA MAIS NOVA
Pôxa, Karina. O que é que adianta você dizer que não vai mais fazer isso? Você sempre volta lá e faz. Essa história de ser garota de programa com hora certa pra acabar não existe. Fica aí saindo com  qualquer um; não olha nem a cara do sujeito, depois vem pra casa cheia de hematoma no meio da cara.
                                   
MARIA
Eu sentia uma “dó” imensa delas. Achava que elas eram tão sozinhas. Tinham empregos tão solitários quanto suas próprias vidas. A maioria trabalhava à noite.  De dia elas ficavam em casa, dormindo, esquecendo.  (ORGULHOSA DE SI MESMA) Mas eu não! Eu não ficava em casa dormindo! Eu tinha dois empregos! E em nenhum deles, ouça bem, em nenhum deles eu vendia a minha alma.

                                               MARIA MAIS NOVA
(FALA CANTANDO) Hoje é domingo! Tô de folga! Quero sair! (INSISTENTE COM A AMIGA) Vamos, lá Karina. Tira esse ranço da noite passada. Vomita esse porre. Vamos levar uma vida saudável. A partir de hoje: vida nova. Lá fora, o calçadão de Copa. Lindo! Enorme! Vamos ver a vida diurna. Conhecer umas pessoas bacanas: o povo da corrida. Quem sabe até arranjar um namorado e casar? De preferência, com alguém diferente desse gigolô babaca que vive te batendo. (PAUSA). Desculpa, amiguinha. Mas isso não é ofensa, é um fato! Sem ressentimento, eu adoro você e preciso de companhia.

MÚSICA AO FUNDO, MARIA MAIS NOVA EM UMA FESTA.

MARIA MAIS NOVA
(ENQUANTO DANÇA COM UM RAPAZ IMAGINÁRIO, CONVERSA EM TOM DE VOZ ALTERADO DEVIDO À MÚSICA ALTA). Eu não venho aqui sempre, não. Cada dia eu vou dançar num lugar. ÉÉÉ pra conhecer gente diferente sempre. Amplia as possibilidades de conhecer um cara legal pra namorar. É, eu quero namorar, sim. Quê? Quantos anos eu tenho? Vinte e poucos e você? Você tem dezessete? Legal! Eu topo! (SAI DE CENA)

                                               MARIA
Eu nunca gostei muito de pensar como seria minha velhice se eu estivesse sozinha. E mesmo namorando muito, eu estava sempre sozinha. Os namoros eram rápidos. Instantâneos. Não duravam mais do que o prazo de experiência. E aí, logo eu estava implorando companhia a qualquer um. (PAUSA). Você é casado?

                                               JOÃO
Fui.

MARIA
Não deu certo?

JOÃO
Eu tinha uma filha.

                                               MARIA
(SURPRESA) Tinha?

                                               JOÃO
Ela se perdeu de mim. (PAUSA)

                                               MARIA MAIS NOVA
(REAPARECE TENTANDO DORMIR) Eu quero dormir, vamos parar com essa barulheira aí. Desliga esse rádio, Joana. Não dá pra ficar nessa agonia à noite toda. Desliga essa droga desse rádio! Você só tem um emprego. Eu tenho dois, minha filha, dois empregos. Pra quê? Pra um dia sair correndo daqui.

MARIA
 (SAUDOSA) É, mas nós éramos muito unidas. Sabe, hoje sinto até falta daquele tempo? A gente fazia uma grande bagunça naquele apartamento. A única condição imposta pela dona da casa era que a gente não trouxesse homem nenhum pra dentro de casa.

MARIA MAIS NOVA
(IMITANDO A MULHER, HISTÉRICA) “Não tem essa história de homem aqui não”.

                                               MARIA
Só o dela. Cada dia era um. Mas quer saber? Eu não me importava. Eu só queria não morar mais com meu pai e minha mãe. Não queria mais ter que dividir o xampu com eles.
                                                          
MARIA NO CENTRO. NO OUTRO EXTREMO, MARIA MAIS NOVA ESTÁ VESTIDA COMO GARÇONETE E DIALOGA COM SEU PAI.

                                               MARIA
Um dia meu pai me ligou...

                                               MARIA MAIS NOVA
(IMITA O PAI). “Filha, como você está?”

                                               MARIA
Eu tinha um namorado. A gente se conheceu lá no meu trabalho! Ia todo dia ao bar em que eu trabalhava à noite. Sentava numa mesinha. Pedia uma bebida, lia páginas e páginas do livro que andava com ele pra cima e pra baixo. E eu andava na frente dele pra baixo e pra cima com meu par de coxas, pra ver se ele me notava. Horas depois ele pedia outro drinque.

                                               MARIA MAIS NOVA
(EXCESSIVAMENTE MEIGA, JOGANDO UM CERTO CHARME). Olha, você não me leva a mal não, mas ao meu patrão disse que você precisa consumir alguma coisa, pois a mesa, assim, fica ocupada demais com você, só três drinques por noite...

                                               MARIA
A gente era bem feliz, sabe? Ele ficava a noite toda lá. Ele engordou uns quatro quilos de tanta batata frita que comeu pra agradar ao meu patrão. Um amor de homem. Ficava esperando meu trabalho no bar acabar e me levava pra casa.

                                               MARIA MAIS NOVA
Pai!? Eu estou bem, obrigada por perguntar. E vocês? Sabe, pai, eu estou namorando. É ele é bem legal. Um cara e tanto. Não tem defeito nenhum, pai. Por que é que você acha que todo o cara que eu namoro tem defeito? (PAUSA). Ele é músico. Não pai, ser músico não é defeito. (PAUSA) Foi bom você ter ligado, eu queria saber, bem, quer dizer, na verdade, eu queria dizer que eu vou ser mãe. (EM TOM DE DISCUSSÃO COM O PAI, RETORNA À CENA INICIAL) Será que algum dia eu vou poder seguir o meu caminho em paz? Para de ficar dizendo como eu devo agir nessa vida. Eu preciso agir do jeito que eu quero. Não quer me apoiar, não apóia, mas não atrasa, tá legal? Não é porque não deu certo contigo que não vai dar certo comigo. (PAUSA). Não vou fazer isso, pai. Como? Você não está sugerindo um aborto? Claro que está! Eu preciso é do seu apoio. Já está muito difícil sem você contra mim.