sábado, 30 de abril de 2011

LUZ CAI UM POUCO. SOB FOCO DE LUZ, MARIA MAIS NOVA.

MARIA MAIS NOVA
(IMITA O PAI) “Quem foi que misturou água nesse xampu?” Fui eu pai... Eu li uma reportagem que diz que o xampu tem detergentes que acabam com o cabelo. Misturei água... pra ficar melhor.

                                               MARIA
(GRITA PARA IMITAR O PAI) “Mas o xampu é meu! Eu comprei, como compro tudo aqui nessa casa. Eu trabalho, compro o xampu e quero usar com detergente. Começa a trabalhar, compra o teu xampu e faz o que bem entender com ele. Com o meu não!”

JOÃO PERMANECE ATENTO À HISTÓRIA DE MARIA.

                                               MARIA
Eu nem sei pra que ele queria xampu. Não tinha quase cabelo mais. (OS DOIS ACHAM GRAÇA DA SITUAÇÃO) Na verdade, o problema era que eu tinha largado a faculdade. Há dois meses que não fazia nada. Só pensava no vazio da minha vida. Sozinha, numa casa cheia de gente, sem gente que pudesse me ouvir.

MARIA MAIS NOVA
(IMITA O PAI) “Vai ficar o dia todo aí... sem fazer nada? Não estuda... Não trabalha... Acho bom dar um rumo nessa vida”

                                               MARIA
(UM LEVE ORGULHO DE SI MESMA) E eu fui seguir meu rumo. (RI) E que rumo... (MELANCÓLICA) Eu achei um rumo pra minha vida. E, como os jovens, dizem, "dancei”. (SILÊNCIO) Bom, eu tinha um par de coxas maravilhoso.

JOÃO
Isso ajuda muito.

MARIA
Sabe que esse par de coxas ajudava em tudo quanto era lugar em que eu ia procurar emprego? (RISOS) Eu chegava em lugares para a entrevista: (IMITA OS EMPREGADORES). “A senhora têm inglês fluente?” (BALANÇA NEGATIVAMENTE A CABEÇA). “A senhora é datilógrafa exímia?”

                                               JOÃO
(RI) Exímia?

                                               MARIA
Exímia! (MAIS UMA VEZ SINALIZA NEGATIVAMENTE A CABEÇA). Aí eles viam o meu corpo, davam uma olhada de rabo de olho nas minhas coxas... “A senhora sabe atender telefone?” Pronto, estava contratada.
JOÃO
As coxas superpoderosas de dona Maria!
MARIA
E as cantadas?

                                               MARIA MAIS NOVA
(TOQUE DE TELEFONE EM OFF) Empresa tal, prazer em atender, bom dia! (CONVERSA COM PESSOA DO OUTRO LADO DA LINHA). Eu tenho uma voz bonita? Obrigada, senhor, em que posso ajudá-lo? (OUTRO TOQUE DE TELEFONE) Empresa tal, prazer em atender, boa tarde! O doutor fulano não está, quer deixar recado? O quê? A que horas eu saio? (OUTRO TOQUE DE TELEFONE). Empresa tal, prazer em atender, boa noite! Se eu dou plantão depois do horário? (SAI OFENDIDA COM A PERGUNTA)

                                               MARIA
Foi muito difícil! Tinha que ter um jogo de cintura... E olha que eu tinha compostura, viu? (PAUSA) Eu até consegui uma promoção: secretária!

                                               JOÃO
Mas sem saber inglês? Sem ser “exímia”?

                                               MARIA
(RINDO) É, mas meu chefe viu que, além das coxas, a minha voz também era muito bonita, e que isso acalmava os clientes que ligavam enfurecidos atrás dele, cobrando seus atrasos e suas faltas nas reuniões. Mas... (CONFIDENCIA PARA O NOVO AMIGO). Eu não sabia bater à máquina.

                                               MARIA MAIS NOVA
(VOLTA Á CENA CARREGANDO MUITOS PAPÉIS). Calma aí, já vai sair seu relatório. (FAZ UMA VERDADEIRA CONFUSÃO COM OS PAPÉIS. FALA PARA UM PATRÃO IMAGINÁRIO). Eu sei: muitos erros... tudo muito borrado também... Pode deixar, doutor, eu vou melhorar. Eu sei, o par de coxas, a voz... (JOGA OS PAPÉIS PARA O ALTO).

MARIA
Eu precisava trabalhar, por isso aceitei o emprego, mas eu odiava ser secretária!

MARIA MAIS NOVA
(FALA PARA O NADA) Ontem eu tive um sonho horrível de novo. Que saco! O mar era imenso. Uma onda gigantesca se formava lá embaixo e eu nadava, quase na beira da praia. Mas era estranho, eu olhava para a areia e só via pessoas mortas e eu não queria morrer; por isso não ia para a areia. E eu ficava ali, no rasinho do mar, olhando a onda gigantesca se formar. Eu não tinha coxas e nadava só com o tronco. E a onda vindo, e meu tronco se mexendo desesperadamente, os braços pareciam asas correndo da onda. (GRITO MUDO). E aí? Eu acordei, né?  E olhei logo para as minhas coxas. Deus me livre de ficar sem minhas coxas!

                                               JOÃO
Arranjou outro emprego? Outro escritório?

                                               MARIA
Mas eu já não te disse que odiava ser secretária? Eu era como você, também queria ser artista, mas não sabia como começar. Aí me disseram: “vai dançar...”

MÚSICA AO FUNDO. NO RITMO DA MELODIA, AS DUAS MARIAS CAMINHAM LENTAMENTE PARA LADOS EXTREMOS. JOÃO OBSERVA A CENA DAS DUAS, VÊ SIMULTANEAMENTE A LEMBRANÇA E A REALIDADE DA AMIGA.  O TEMPO DA EMOÇÃO SENDO CONSTRUÍDO.

                                               MARIA
Sabe como é... Dezenove anos. Cintura fina... “parzão” de coxas luminoso, sob o salto alto... Nossa! O mundo todo babava.

AS DUAS MARIAS DANÇAM, CADA UM NO SEU ESTILO. MARIA MAIS NOVA FAZ UM SHOW, COM “BOIS”. MARIA DANÇA LINDAMENTE; EXPLORA TODA A SUA SENSUALIDADE; SENSUALIDADE CONSTRUÍDA DURANTE TODA UMA VIDA. JOÃO FICA ENCANTADO, PUXA MARIA PARA SI E DANÇA COM ELA POR UM TEMPO.

MARIA
(AOS POUCOS, MARIA SAI DO “TRANSE” DESENCADEADO PELAS LEMBRANÇAS E PELA DANÇA COM JOÃO). Pára com isso... Pára. (AFASTA JOÃO COM AS MÃOS E GRITA) PÁÁÁÁÁRA! (AS DUAS MARIAS FICAM IMÓVEIS). Não deu mais pra mim.

SILÊNCIO. JOÃO, LEVEMENTE PERTURBADO, RETORNA AO BANCO DA PRAÇA. MARIA CONTINUA EM PÉ, REFLEXIVA. MARIA MAIS NOVA ENCAMINHA-SE ATÉ UMA DAS ESCADAS, ONDE PERMANECE APOIADA. MARIA, UM POUCO MAIS CALMA COMEÇA A FALAR E SENTA-SE AO LADO DE JOÃO. COM O OLHAR, PEDE DESCULPAS PELO CONSTRANGIMENTO DA SITUAÇÃO.

                                               MARIA
Eu sei que o dinheiro era fácil, dava pra pagar a pensão onde eu morava. Eram seis meninas morando num apartamento de sala e dois quartos. Quatro mulheres num quarto; a gente dormia em beliche. E mais duas dormiam na sala. A dona da casa no outro quarto, sempre com um homem diferente na cama.

                                               JOÃO
(FINGE QUE NADA ACONTECEU) Quatro mulheres num único quarto?

                                               MARIA
(O TEMPO DE CONSTRUÇÃO DE UMA PIADA, PARA TUDO VOLTAR AO NORMAL RAPIDAMENTE) E a janela?

                                               JOÃO
(COADJUVANTE DA PIADA) O que é que tem a janela?

                                               MARIA
Não tinha. O único vento era o que vinha da sala e que precisava fazer a curva no corredor para chegar até o nosso quarto.

OS DOIS ACHAM GRAÇA.

                                               MARIA MAIS NOVA
Eu quero ir ao banheiro. Es-tou a-per-ta-da. Nessa casa só tem um banheiro, ô Sirlene. E eu que você tem que se aprontar pro show? Eu também tenho que trabalhar. Não é porque eu não sou mais dançarina e trabalho como garçonete que não tenho que me arrumar. E vambora logo com isso. Vamo lá, vamo lá... (BATE NA PORTA DO BANHEIRO IMAGINÁRIO).

MARIA
Mas a gente até que se entendia bem: todas faziam parte de um mesmo time. O time das que tinham que se virar sozinhas. Cada uma dava o seu jeito pra sobreviver. A gente brigava exatamente porque cada uma era de uma maneira, mas, no fundo, a gente compreendia perfeitamente a vida que cada uma levava.

terça-feira, 26 de abril de 2011

MARIA OLHA SOLIDARIAMENTE PARA JOÃO.

                                               JOÃO
A senhora sabe? Eu hoje estava vindo pra cá e estava exatamente pensando nisso. Eu estou com quase quarenta anos. (LEVANTA) Mas nem parece, pode dizer! Olha bem: um homem e tanto, não é não?

MARIA CONCORDA COM UM GESTO.
                       
JOÃO
Eu estava aqui pensando que eu sempre fiz tudo o que disseram pra eu fazer. Aos dezessete anos fiz até um teste vocacional. Todo mundo fazia. E o resultado era quase sempre o mesmo: “Aptidões para Ciências Contábeis, Medicina, Educação...” tudo ali, misturado. E a pessoa que se virasse pra entender o resultado e fazer a escolha certa. A pessoa tinha que se conhecer. (SEGURA O BRAÇO DE MARIA) Eu devia ter pedido para o meu pai interpretar o resultado do teste. Ele pelo menos "achava" que me conhecia. Eu não! Eu tinha certeza de que eu não me conhecia.

JOÃO PEGA OUTRO CIGARRO, PENSA EM FUMAR.

                                               JOÃO
Eu gostava de música, gostava de compor, de cantar. Mas tive que esquecer tudo isso. “Artista não é profissão”, ele dizia o tempo todo. Aí eu resolvi fazer vestibular para Direito. Meu pai bancava meus estudos. Advogado... Concurso público... Sabe como é: carreira bonita, todo mundo gosta. Antes ele tinha tentado me convencer a fazer medicina, mas é claro que não deu!

MARIA MAIS NOVA
(EXPRESSÃO DE NOJO) Eca, mãe! Galinha ao molho pardo! Que é isso? Galinha com sangue? Que nojeira!

JOÃO
A senhora não vai acreditar, mas eu nem tinha beijado na boca de uma menina ainda e eles queriam que eu soubesse o que eu ia querer ser quando crescesse. Eles não se preocupavam se meus hormônios estavam equilibrados dentro do meu corpo ou se eu já tinha namorada, mas me queriam doutor. (JOGA FORA O CIGARRO SEM ACENDER)

MARIA MAIS NOVA
(IRRITADA) Mãe! Pai! Eu quero ir pra festa. Lá vai estar o Tavinho, o Juninho, o Flavinho. Quero dançar...

JOÃO
(IMITANDO O PAI) "Só quer saber dos seus direitos, não é? Dever que é bom... nada!". Era assim o tempo todo. Isso, realmente, enfraquecia a nossa relação. (VOLTA À IMITAÇÃO DO PAI) “Largar a faculdade? Você está louco! Eu já paguei um ano de estudos... comprei livros... e agora? Vai largar tudo? Nunca!”

            MARIA MAIS NOVA
Mas pai, eu não agüento mais essa droga dessa faculdade... Direito Civil, Penal, Criminal... Não gosto. Não quero

                                               JOÃO
(CONTINUA A FALAR COMO O PAI) "Vai ser servidor público, sim. Não vai largar faculdade coisa nenhuma. Enquanto depender de mim vai ter que estudar. Estudar Direito. E direito. Fui claro?".

                                               MARIA MAIS NOVA
Eu estudo outra coisa. Faço vestibular de novo... Sei lá. Vou aprender inglês.

PELA PRIMEIRA VEZ, MARIA POSICIONA-SE SOBRE A HISTÓRIA DE JOÃO QUE É, TAMBÉM, A SUA HISTÓRIA. PRONUNCIA LEMBRANÇAS DE SEU PRÓPRIO PASSADO.

                                               MARIA
‘Não sabe o que quer...’

JOÃO E MARIA TROCAM OLHARES, CÚMPLICES.

                                               JOÃO
Eles sempre acham que a gente não sabe o que quer...

MARIA MAIS NOVA
Como você pode querer que eu saiba o que quero da minha vida com dezoito anos, pai? Não dá pra escolher futuro com dezoito anos... Não sei o que quero mesmo... Não sei...

                                               MARIA
Não sei de nada.  Só sei que, no início, fazia tudo como eles queriam. Estudei, como eles queriam. Namorava pouco...

MARIA MAIS NOVA
(SEGREDA PARA O NAMORADO) Tavinho, tem que ser escondido, pra não incomodar ninguém.

                                               MARIA
(LEVEMENTE ACANHADA PELAS REVELAÇÕES QUE ESTÁ FAZENDO) Eu era uma adolescente bem avançada para a minha época. Meus pais nem imaginavam que eu namorava toda a vizinhança.

                                               JOÃO
Os hormônios...

                                               MARIA MAIS NOVA
Pai, eu não falei palavrão. Diz, vai, diz que palavrão que eu falei? Ah, fala sério, pai, “porra” não é palavrão, não. “Porra” é vírgula.

MARIA
Não era bom não.

                                               JOÃO
Imagino.

MARIA
Pois é.
                                                          
 (SILÊNCIO)

MARIA

(LEVEMENTE IRRITADA) Mas teve uma hora que eu enchi a minha paciência! Lotei o pote! Foi o xampu... Tudo por culpa do xampu!

domingo, 24 de abril de 2011

            MARIA MAIS NOVA
(DISCUTE COM ALGUÉM) Será que algum dia eu vou poder seguir o meu caminho em paz? Pára de ficar dizendo como eu devo agir nessa vida! Eu preciso agir do jeito que eu quero. Não quer me apoiar, não apóia, mas não atrasa, tá legal?  Não é porque não deu certo contigo que não vai dar certo comigo.

                                               MARIA
(CANTA UM POUCO MAIS ALTO)

HOMEM
(EM OFF) Nasceu!

MARIA
(SUA MÚSICA É INTERROMPIDA PELA LEMBRANÇA, MAIS FORTE DO QUE ELA. CONTINUA A CONVERSAR COM SUA PRÓPRIA VIDA.) Será médica... geriatra. Isso mesmo, geriatra. Vai cuidar de mim.

MARIA MAIS NOVA
(CONTINUA EM TOM DE DISCUSSÃO) Não vou fazer isso, pai! Como? Você não está sugerindo? Claro que está! Eu preciso é do seu apoio. Já está muito difícil sem você estar contra mim. (TERMINA A DISCUSSÃO E CAMINHA EM DIREÇÃO A UM BALANÇO POSICIONADO EM UMA DAS ESCADAS)

MARIA

Olha só, mulher! Olha como ela sabe escrever direitinho... (EMOCIONADA PELA LEMBRANÇA) Olha como ela faz o “A”... O “E”... Já te disse: se ela não quiser ser médica, vai ser é professora. Vai ensinar a nação a ler e a crescer. Vai contribuir pro futuro do país.

MARIA, AINDA SENTADA NO BANCO DE PRAÇA, FALA OLHANDO EM OUTRA DIREÇÃO. JOÃO ENTRA E A OBSERVA.
                                  
MARIA
Que história é essa de ficar só pensando em namorado? Tão pequenininha. Não tem essa de “deixa pra lá que isso é coisa de criança, não.”

JOÃO

(INTERROMPE MARIA) Namoro só com dezoito anos. E olhe lá! (SENTA-SE AO LADO DE MARIA) Quer fumar? (OFERECE UM CIGARRO A ELA)

MARIA, EMUDECIDA, BALANÇA NEGATIVAMENTE A CABEÇA.

                                   JOÃO
Fuma, moça. É bom! Quando a gente fuma, olha só, (DÁ UM TRAGO. SOPRA A FUMAÇA DE FORMA DEMORADA E PRAZEROSA) parece que os problemas vão embora...

MARIA CONTINUA A OLHAR ESTRANHAMENTE PARA JOÃO. MARIA MAIS NOVA SENTA-SE NO BALANÇO.

                                               JOÃO
Tem certeza de que não quer nem tentar? Hein? Bom, depois não diz que eu não avisei. Se tentasse fumar, diminuiria um pouco essa cara esquisita com que você fica aí, olhando pra tudo.

MARIA SENTE INCÔMODO COM A OBSERVAÇÃO, MAS ACEITA O CIGARRO. DÁ UMA TRAGADA E TOSSE.

                                               JOÃO
Não é bom? Olha só! Já está com uma cara melhor. Meu nome é João; e o seu?

MARIA APERTA A MÃO ESTENDIDA DE JOÃO, MAS É MARIA MAIS NOVA QUE RESPONDE.     

MARIA MAIS NOVA

Maria!


                                   JOÃO

Sabe com que idade eu comecei a fumar, dona Maria? (SEM ESPERAR MARIA RESPONDER). Com quase trinta anos. Bobagem começar tão tarde, não é? Eu nunca peguei num cigarro quando era mais novo. Consegui ficar sem fumar durante toda a adolescência. Até aquele cigarrinho que oferecem quando a gente tem doze ou treze anos... O cigarro da mudança de idade! O cigarrinho da auto-afirmação! Pois é. Nem esse eu fumei.

EM OUTRO TEMPO E LUGAR, MARIA MAIS NOVA PEGA UM CIGARRO E TRAGA.

JOÃO
(IMITA SEU PAI) "Vê se não vai aceitar cigarro na escola não, viu menino?". Era assim que meu pai sempre dizia. E eu não aceitava. (PERGUNTA PARA MARIA) No seu tempo também era assim?

MARIA RESPONDE SORRINDO COM O OLHAR, ENQUANTO MARIA MAIS NOVA CONTINUA A FUMAR OSTENSIVAMENTE. 

MARIA MAIS NOVA
(CONTINUA SENTADA NO BALANÇO, ENQUANTO FUMA). Nãoooo, pai. Eu não fumo maconha. Nãoooo, pai. Eu não uso drogas.

                                               JOÃO
Meu pai era um homem bom. Um homem ótimo.

MARIA

Ótimo pra dar sermão.

                                               JOÃO
Ótimo pra dizer o que era certo e o que era errado.

MARIA MAIS NOVA
Ótimo pra encher o meu saco!

JOÃO

Ótimo para me fazer sentir um perfeito incompetente por não entender metade das coisas que ele dizia.

MARIA MAIS NOVA
(IRÔNICA). “Não chega tarde! Não beija na boca! Não! Não! Não!”

                                               JOÃO
Só sabia proibir. E eu, que sempre fui obediente, fazia tudo direitinho. Sempre fiz tudo o que disseram pra eu fazer.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

ACABOU O XAMPU - personagens e cenas iniciais

Personagens


MARIA
JOÃO
MARIA MAIS NOVA













ACABOU O XAMPU
Alguns dramas em um único ato




EM UMA CENA QUASE VAZIA DE OBJETOS, MAS REPLETA DE SIGNIFICADOS, SURGE MARIA MAIS NOVA. NO CENTRO DO PALCO, UM BANCO DE PRAÇA ONDE ESTÁ SENTADA MARIA. ALÉM DO BANCO, APENAS ALGUMAS ESCADAS E UM BALANÇO.

MARIA

(ENQUANTO FALA SOZINHA, ESBOÇA SORRISOS NASCIDOS DE SUAS LEMBRANÇAS) Dezesseis ou dezessete anos... Dezesseis! Eu tinha dezesseis anos, isso mesmo! Eu olhava a praia...  O mar batia forte com jeito de ressaca.


MARIA MAIS NOVA
Droga de pesadelo. Novamente a agonia desse mar batendo. E eu ali, de-ses-pe-ra-da, querendo nadar. Do nada, vem uma onda enorme, bem aqui do meu lado esquerdo. Eu nunca vi onda se formar do lado esquerdo da pessoa! Lá na frente, a areia, e depois da areia, mais água. Não acabava nunca mais.

                                               MARIA
De repente, aquele homem chegou perto de mim: “O mar é belo não é, minha filha?” E eu, sem nada responder. “A vida também é bela”. Ele podia ter razão? (PAUSA) Minha mãe veio novinha para o Rio de Janeiro. Ela era do interior de São Paulo e logo que chegou aqui conheceu meu pai. (RISOS) Minha mãe, em sua obsessão interiorana, manteve firme o desejo de morar perto da praia. Mas não podia ser qualquer praia, não... Tinha que ser Copacabana. Ela disse que tinha vindo para o Rio para viver em Copacabana e que, dali, só sairia morta.

SILÊNCIO.

MARIA

 Alguém disse, um dia, que a filha de um senhor de oitenta anos foi visitá-lo num sábado à tarde, como fazia sempre. Então ela colocou a chave na fechadura, mas a porta estava trancada com um trinco, desses antigos, tipo corrente. A filha não conseguiu abrir a porta. Ela podia ver, pela fresta, que dentro da casa não havia nenhuma luz acesa, nada; não havia nenhum barulho; só um espaço enorme entre o vazio da casa escurecida e o quarto do pai: “Pai?”. (ANGUSTIADA) E ela começou a gritar alto, a tentar arrebentar o trinco. A vizinhança apareceu e um rapaz conseguiu arrombar a porta para ela. A filha então entrou correndo na casa gritando: “Pai! Pai! Pai!” (SILÊNCIO). O senhor morreu sozinho no apartamento. (REFLETE SOBRE O QUE ACABOU DE DIZER) Engraçado... Eu não tenho medo de morrer só. Eu morro é de medo de viver assim.

MARIA MURMURA UMA MÚSICA. NESSE MOMENTO HÁ UMA ANTECIPAÇÃO DE UMA CENA QUE VAI SE REPETIR MAIS ADIANTE.

ANTES DE TUDO, UMA EXPLICAÇÃO...

... a peça em questão foi apresentada em leituras e em um festival universitário. Foi escrita, em sua versão inicial, em 2002. Revivida em 2004, numa leitura. Mais tarde produzi uma versão em livro, por impressão independente, e então ela foi guardada novamente, até hoje. Temo que eu mesma nunca mais permita que esta minha cria dê as caras novamente, por isso resolvi publicá-la virtualmente.

A intenção é que ela seja lida, se possível, pelo maior número de pessoas.  Publicarei o texto aos poucos, a fim de que os possíveis leitores (e caros e queridos amigos) tenham tempo de ler, sem afobamento.

No mais, é agradecer, somente, a atenção e os possíveis comentários.

Um abraço,
Cy Lopes

ACABOU O XAMPU - sinopse

ACABOU O XAMPU
SINOPSE

O texto “Acabou o Xampu” aponta sutilmente para a reflexão, processo anterior à transformação intrínseca do ser. “Acabou o Xampu” é o encontro de silêncios; do silêncio dos personagens João e Maria; do silêncio de tantos: vozes que se calam pela dor das lembranças.
Longe de se preocupar com a indicação de soluções para uma vida melhor, o texto sugere, e apenas sugere, a autoanálise, por intermédio dos personagens e do renascer de suas memórias nunca antes reveladas.
É o diálogo das lembranças de dois personagens – ou seria a conversa do passado de três personagens? Em qualquer das interpretações possíveis, “Acabou o Xampu” opta pela não-linearidade e pelo encontro de diversos pequenos textos entrecortados (mas absolutamente encadeados) que fazem parte desse grande mosaico que é a alma humana. Não há preocupação demasiada com a lógica. Afinal, as lembranças estão embaralhadas na mente dos que decidem ouvi-las e, a partir delas, optam por tirar algum proveito pela vida afora e para a vida agora.
  João é um homem de quarenta anos e Maria é uma mulher na terceira idade ou quase. O encontro entre os dois ocorre exatamente no momento em que não conseguem mais lidar com seus fantasmas. Personagens que se diferenciam no presente, mas que se solidarizam pelo passado. E é exatamente o passado, surgido com a presença de Maria Mais Nova, a mola propulsora para o encontro com o futuro.
            Maria Mais Nova aparece em cena para dar voz ao silêncio, exaltar as lembranças e desmistificar as dores. Em um constante flash-back, Maria Mais Nova elucida as histórias de João e de Maria e sugere aos dois, e a quem interessar possa, a necessidade de reflexão a partir da vida e até, na melhor das possibilidades, a transformação pelo embate com a própria alma.
            João e Maria desossam suas lembranças e tentam compreender os fantasmas que dão sentido as suas vidas. Enfim, há revelações de ‘Marias’ que, como tantas outras, têm tanto a descobrir sobre si mesmas. Com a estrada diante de si, cada uma das ‘Marias’ em cena nos mostrará a opção de suas pernas.