sábado, 4 de junho de 2011

último ato

MARIA MAIS NOVA DISTANCIA-SE DA CENA. JOÃO AGORA FALA DIRETAMENTE PARA MARIA, QUE FALA PARA SI MESMA.

JOÃO
A minha filha era muito inexperiente. Muito nova. Tinha dezenove anos. Alguém pode me dizer por que é que os filhos sempre têm que agir de forma diferente do que a gente espera que eles ajam? Eu, sinceramente, não consigo entender como é que uma pessoa tão despreparada para a vida pensa que pode sobreviver longe dos pais. Abandonar o canto seguro e ficar batendo cabeça por aí.

MARIA
Eu sempre quis voar muito...

JOÃO
 Ela era tão impulsiva. Trabalhava em qualquer coisa.

MARIA
Voar alto...

JOÃO
(IRRITADO) Eu pedi tanto para ela estudar. Mas ela não queria, achava que não precisava. Queria trabalhar e ser dona do próprio nariz. E sempre metia o nariz onde não devia. E aí veio a gravidez.                                                        
MARIA MAIS NOVA
(MARIA MAIS NOVA AGORA CONVERSA COM UMA DAS AMIGAS) Obrigada por ter ido comigo, Grace Kelly. Se você não tivesse lá, eu acho que ia desmaiar de tanto medo e de tanto nojo de mim, do médico açougueiro, do meu pai. Agora acabou tudo, como num passe de mágica. É como se nada tivesse acontecido...

                                               MARIA
... fica tudo diferente para sempre.

MARIA MAIS NOVA
(FALA COM O DESTINO) Não, eu não quero dormir. Se eu dormir, vou sonhar com o mar de novo. O mar vai me engolir e eu não vou conseguir sair da confusão, porque eu estou fraca. Eu não quero sonhar nunca mais.
                       
                                               JOÃO
(IRRITADO) Teimosa! Eu disse pra não engravidar. Namorou à vontade. Não me consultou na hora de fazer o filho, ligou para colocar a bomba na minha mão e depois ainda me culpou por ter feito o que bem entendeu. Mas eu tenho consciência de que falei quando saiu de casa...

MARIA MAIS NOVA RETOMA A DISCUSSÃO COM SEU PAI.
MARIA MAIS NOVA
(GRITA PARA O PAI) Eu vou dar para o primeiro que aparecer, sim, e você não tem nada a ver com isso! Você não vai mais acabar com meus sonhos de ser feliz.

JOÃO
Saiu batendo a porta. Desaforada! Pensava que eu ia sair correndo atrás dela, mas não, de jeito nenhum. Queria viver na minha casa, tinha que ser do meu jeito. Eu sempre fiz tudo o que meus pais queriam, porque ela não podia fazer o que eu queria? Eu só queria aquela menininha da bandejinha de volta. Queria as mãozinhas dela fazendo carinho na minha cabeça.
                                                          
MARIA MAIS NOVA
(AINDA PARA O PAI) Você nunca me apoiou. Não me deu força para que “eu” tivesse uma menininha que me desse amor numa bandeja.

JOÃO
Eu casei com quem eles achavam que era bom pra mim. Minha mulher e eu não tínhamos nada em comum. A gente estava adoecendo de viver junto.

MARIA MAIS NOVA
Não agüento mais ouvir você falando com esse monte de mulher pelo telefone. Pensa que eu não sei? É só minha mãe passar uma temporada no hospital que você fica aí, o tempo todo, conversando com essas vacas.

JOÃO
A doença da relação estava acabando com a vida de minha mulher, que vivia cheia de complicações...

MARIA MAIS NOVA
Eu não vou agüentar ver você marcando encontro com essas putas. Um dia eu conto tudo pra minha mãe. Acho bom você tomar cuidado para ela não saber das suas traições...

JOÃO
Mas eu nunca deixei ela saber da gravidez desnecessária da nossa filha. Só que a solidão em casa foi ficando insuportável. Antes, com a menina lá, a gente se esquecia um pouco de que estava casado por acaso.

MARIA MAIS NOVA
Não sei como mamãe ainda não morreu de desgosto vivendo com você.

JOÃO
Minha mulher andava pela casa, desesperada. Arrumava o quarto da menina, como se ela ainda estivesse com a gente. Mas ela não aparecia por lá. Às vezes ela ligava pra mãe, mas não falava comigo...

A PARTIR DE AGORA, JOÃO E MARIA CONVERSAM, CADA UM EM SEU TEMPO E EM MUNDOS DIFERENTES.  MARIA MAIS NOVA CONTINUA A DESENTERRAR LEMBRANÇAS.

                                               MARIA
 (LEVANTA-SE E, DEGAVAR, ENCAMINHA-SE PARA O EXTREMO OPOSTO ONDE ESTÁ MARIA MAIS NOVA) De vez em quando, meu pai me procurava pra saber se eu ainda estava viva.

                                               JOÃO
Com o tempo a raiva foi diminuindo e, de quando em vez, eu ligava pra ela, mas não pedia pra ela voltar. Pra não dizer que nunca fiz isso, só fraquejei uma vez, quando minha mulher estava nas últimas...

                                               MARIA MAIS NOVA
(IMITA O PAI) “Filha... Volta pra casa... tua mãe vive perguntando por você. (PAUSA) Tua mãe está doente.”

MARIA MAIS NOVA DIGERE A DOR DA SITUAÇÃO COM UMA LEVE PAUSA.

                                               MARIA MAIS NOVA
(PARA O PAI) Eu vou visitar ela, pai. Durante a semana não dá. Trabalho à tarde e à noite. De dia tenho que dormir um pouco.  Final de semana eu vou, prometo!

                                               JOÃO
(SECO, RESPONSABILIZA A FILHA) Tua mãe morreu!

                                               MARIA MAIS NOVA
(GRITA) MÃE!

                                   MARIA MAIS NOVA E MARIA
Mamãe?
           
                                               MARIA
Minha mãe conseguiu morrer em Copacabana...

MÚSICA SUAVE E DISTANTE. MARIA RETORNA VAGAROSAMENTE PARA O BANCO ONDE ESTÁ JOÃO.

                                               MARIA
Um dia eu acordei e não tinha mais mãe.

MARIA MAIS NOVA
E não tinha mais pai.

MARIA
E eu nem pude dizer pra ele que já tinha dinheiro, pelo menos, pra comprar quantos potes de xampu eu quisesse pra botar toda a água do mundo dentro.

MARIA MAIS NOVA
Toda a água do mundo dentro de todos os potes de xampu que eu pudesse comprar!

                        MARIA
Eu era uma mulher independente! Podia lutar pela integridade física do meu próprio xampu! Tinha dois empregos e morava sozinha numa “kit” em Copa que ele nem chegou a conhecer. Também, não ia gostar de saber que eu trabalhava num bar com o par de coxas de fora. Melhor assim, morreu sem saber. (FALA PARA JOÃO) Estou falando demais?

MARIA MAIS NOVA
(CONTRACENA COM UMA DAS ESCADAS. IMITANDO O PATRÃO) “Me desculpe, Maria. Mas você está errando todos os drinques. Já vieram reclamar que você mistura “whisky” na caipirinha. “Whisky” na caipirinha,  Maria?!” (PEQUENA PAUSA)        Desculpe, mas o senhor sabe, a minha mãe morreu...

RESIGNADO, JOÃO OLHA PARA UM FOCO DE LUZ.

                        JOÃO
Pai! Mãe! Passei no concurso pra juiz.  Se eu estou feliz? Vocês querem saber se eu sou feliz?

MARIA MAIS NOVA CONTINUA A DISCUSSÃO COM SEU PATRÃO
           
MARIA MAIS NOVA
Minha mãe morreu, cara. (GRITA E ERGUE OS BRAÇOS) Meu pai morreu; meu filho morreu. Dá pra respeitar a dor de uma pessoa? (PAUSA. BAIXA O TOM DE VOZ) É, não deu pra respeitar minha dor! (TEMPO. VOZ DE EMBRIAGADA. APOIA-SE NA ESCADA) Manoel, me dá mais uma vodka. Não enche o saco, porra, Manoel, me dá mais uma porra de uma vodka e pronto! Porra, Manoel, é pra esquecer. (PAUSA) Não, Manoel, porra não é palavrão, porra é vírgula.

                                               MARIA
Não deu mais pra segurar o par de coxas que segurava o emprego. Pra mim não deu!

JOÃO
Às vezes eu tenho vontade de ligar pra minha filha, saber como ela está.

                                               MARIA
Eu tenho sonhado todo o dia o mesmo sonho. É só fechar os olhos que, pronto, já estou dentro do apartamento de alguém. Sempre alguém solitário, triste. A pessoa sentada, em uma cadeira de balanço; ou olhando pela janela para a rua escura e quieta.

                                               JOÃO
Mas eu acho que a gente se perdeu de vez.

MARIA PEGA A SUA BOLSA E SE ENCAMINHA PARA O LADO OPOSTO ONDE ESTÁ MARIA MAIS NOVA.

                                               MARIA
Às vezes a pessoa está morta. E eu sempre saio correndo do apartamento dela e acordo nessa hora. (PARA JOÃO, À DISTÂNCIA) Eu já lhe contei que quando era adolescente estava olhando o mar lá no pontal da praia do Leme e um senhor disse que o mar era belo e que a vida também era bela? (PAUSA) Queria ajudar. Acho que ele tinha medo que eu me matasse ali, na frente dele. Mas eu não teria coragem. Eu nunca vou me matar!      
                                  
JOÃO
Talvez um dia...

MARIA MAIS NOVA
(ALIVIADA) Ontem eu sonhei com o mar de novo. Ainda tinham aquelas pessoas mortas na areia e a onda enorme continuava me perseguindo. Mas eu consegui nadar e fiquei boiando tranqüilamente a noite toda. A onda, lá atrás, parou de me perturbar. (SOBE ALGUNS DEGRAUS DA ESCADA)
                                  
AO SEU LADO, APARECE UM FOCO DE LUZ, QUE REPRESENTA UMA PRESENÇA: UMA SAUDADE, UM ANJO, A MORTE OU A SOLIDÃO. MARIA CONTINUA CAMINHANDO NA DIREÇÃO OPOSTA À MARIA MAIS NOVA.

MARIA MAIS NOVA
(ESTENDE A MÃO PARA MARIA. CHAMA POR ELA) Maria!

MARIA PÁRA E VOLTA, RETORNA EM DIREÇÃO AO CHAMADO. ESTENDE A MÃO PARA MARIA MAIS NOVA.

                                               MARIA
Maria?

O TEMPO NECESSÁRIO PARA O RECONHECIMENTO; ENTRE CADA FALA, O TEMPO ENTRE AS CONTRAÇÕES DE UM PARTO.

MARIA

Quero meu pai de volta!
MARIA MAIS NOVA
Quero minha mãe de volta!
MARIA
Quero meu par de coxas de volta!

AS DUAS MARIAS FICAM COM AS MÃOS ESTENDIDAS UMA PARA A OUTRA: PRIMEIRO O RECEIO E A DÚVIDA; DEPOIS A CERTEZA DO REENCONTRO E A VONTADE DO RECOMEÇO. JOÃO CAMINHA PARA O LADO OPOSTO, OLHA PARA A CENA E ENXERGA AS DÚVIDAS DE SUA PRÓPRIA VIDA; ACENDE UM CIGARRO. CRESCE A MÚSICA, DIMINUI A LUZ.


                                                           FIM




2 comentários:

  1. Não poderia ser melhor o encerramento,dessa obra que reúne o xampu como figura central,abstrata e real,algo como um limite e um símbolo de como pequenas coisinhas podem ser motivo de conflitos em relações que já apresentem fraquezas,fissuras emocionais e algumas palavras não ditas,foi maravilhoso ser espectador desta peça,da estória das Marias e de João,da minha história e de tantos outros.Um dos principais motivos de eu admirar a sua escrita,sua fala,é que você me passa humanidade,Cynthia,você se permite,pelo menos aqui,ser humana em sua totalidade,viver,porque não,aqui?! em bytes e bits,sem esquecer ou deixar de lado todos os sentidos reais e as emoções do mundo lá fora.Saiba então que apesar de este,ser um comentário em relação à peça,também é um comentário em relação à autora,outrora atriz,outrora platéia e tudo mais,enfim,bela.

    abraço !

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  2. Allan, querido amigo, o encorajamento que recebo de poucas (e caras e raras) pessoas coo você é que me faz seguir, apesar de tantas pedras no meio do caminho. Todos temos pedras no meio do caminho... não sou a única, eu sei. E é por isso que, tendo a Graça de ter pessoas como você por perto, valorizo a Benção e sigo em frente.
    um beijo e OBRIGADA!

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